Domingo, 20 de Julho de 2025
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Cultura Coluna do Ernâni

A jiboia do tempo

ERNÂNI GETIRANA (@ernanigetirana) é professor, poeta e escritor. É autor de inúmeros livros, dentre eles “Debaixo da Figueira do Meu Avô”. É membro da APLA, ALVAL, UBE-PI e do IHGPI.

19/07/2025 às 08h19 Atualizada em 19/07/2025 às 08h35
Por: Gustavo Mesquita
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A jiboia do tempo

 

As décadas se passaram como uma jiboia que deslizasse pela orla do açude de seu Milton Brandão (*) à procura de comida ou de sombra. Ou das duas coisas e nessa ordem. Mas seja como for, somos todos comidos pelo tempo. E agora Rosa Doida não era mais aquela mulher pujante, altiva e ativa de tempos atrás. Estava aí por volta dos cinquenta anos.

A mecha branca que dividia ao meio a negra cabeleira em duas porções, agora enfrentava séria concorrência com o mar de fios brancos que povoavam a cabeça de Rosa como um todo.

Sua pele, sim, continuava com aquele tom amarronzado, parece que estava até mais acentuado, chegando a um caramelo misturado a café. Continuava delgada, fina, como se dizia, e não era de fome não.

Os seios ainda de menina naquele corpo de mulher madura. O nariz ablongo, a boca pequena e de lábios curtos. Os olhos, a estes o tempo não tirara o brilho de sempre. Continuavam duas pedras de opala alumiadas pela menina que habitava dentro dela.   Tanto isso era verdade que até ganhara de presente um poema do poeta mais famoso do lugar, o Chico Neves.

E agora com o sorriso de atriz hollywoodiana cuidado pelo prático Luizinho, pago pelo deputado. Pensando bem, se o tempo podia ser uma jiboia a nos devorar, Rosa Doida não ficava para trás pois não era doida para se deixar comer pelo tempo.

Num certo sentido, Dona Rosa era uma jiboia também, assim como o tempo. Ela mesma se dizia assim ou meio assim. “Sou como jiboia e óia que vocês deve de ter cuidado comigo”.

Tanto era verdade que era uma das poucas pessoas a tomar banho na barragenzinha do sítio da Água Boa sem precisar de autorização do deputado Milton ou mesmo do caseiro que cuidava do sítio. E fazia isso sempre que vinha à cidade. Ia tomar banho na barragenzinha  e chegava a atravessar de ponta a ponta. Na barragemzinha eram só Dona Rosa e a jiboia de estimação do deputado.

- Dona Rosa, a bichinha lhe pega! Gritavam para ela, e ela:

- Pega nada! Ela quer só beber água e se refrescar. E eu quero só tomar banho. Mulher se entende com mulher. E punha-se a cantarolar alguma canção antiga que ela ouvira em sua infância. Tomava banho de vestido e tudo que era para os caboclos não ficarem pensando besteira.

Pois Rosa Doida estava agora mais velha, como de resto todos na cidade. A não ser os que haviam morrido, é claro. É que, ao morrer, a pessoa imediatamente fica com a idade que tem para o resto da eternidade. E a eternidade, meu povo, é tempo que não acaba mais. Dura mais que baba de bode ruminando pela noite sem parar.

Quem gostava dessa comparação era padre Áureo. “Olhem, dizia ele, bando de pecadores, se vocês desobedecerem a Deus, hão de passar a eternidade todinha virados em bode, à beira de um altíssimo precipício babando sem parar um tiquinho assim”. 

Por exemplo, aquele menino de doze anos que a bala perdida acertou no patamar da igreja matriz, ali por volta de 1940, terá doze anos para todo o sempre.

Mas eu acredito que após setenta e tantos anos depois de sua morte fatídica, Jesus Cristo já deve ter estancado o jorro de sangue de seu peito, pondo ali seu santo polegar. Pois foi mesmo Padre Mário quem disse isso na missa de sétimo dia do anjinho. Nisso Rosa Doida acreditava piamente, pois tinha ouvido com os próprios ouvidos essa história de sua finada mãezinha que, na época do acontecido era ainda uma mulher jovem.

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(*)Açude de propriedade do então deputado federal, filho de Pedro II, Milton Brandão e que se localizava do lado oposto, do outro lado da rodovia, ao açude atual, o Joana.

 

PS. Esse texto fax parte do livro “Novas Estripulias de Rosa Doida”, inédito

ERNÂNI GETIRANA (@ernanigetirana) é professor aposentado do estado (ainda leciona na rede municipal de educação), poeta e escritor. Presidente da APLA – Academia Pedro-segundense de Letras e Artes, membro da UBE-PI, ALVAL e do IHGPI. Formado em Letras pela UFPI, onde também fez mestrado. Membro fundador do Coletivo P2. Pertence aos coletivos ‘Amigos da Literatura’ e  Coletivo Literário de São Benedito, CE. É autor, dentre outros livros de “Debaixo da Figueira do Meu Avô” (Livraria Entrelivros, Teresina). Atualmente prepara três novos livros, dente estes “História, Geografia e Literatura de Pedro II, Piauí” (livro didático para escolas de Pedro II). Escreve aos sábados para o Portal P2.

 

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Cultura com Profº Ernâni Getirana
Cultura com Profº Ernâni Getirana
Sobre Ernâni Getirana, professor, lecionou na UESPI e Faculdade Santo Agostinho, aposentado na Rede Estadual de Educação, Ecoescola Thomas a Kemps. Ainda na ativa na Rede Municipal de Educação de Pedro II. Formado em Letras pela UFPI, graduado em Meio Ambiente pela UnB, graduado em Educação pela UFRJ, mestre em Políticas Públicas pela UFPI. Membro das academias: Vale do Longá e Pedrossegundense de Letras e Artes. É poeta e escritor, autor de vários livros, dentre eles “Lendas da Cidade de Pedro II”.
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