Sábado, junho de 2020
Esqueci o dia do mês e estou com preguiça de verificar a folhinha do ano presa atrás da porta do quarto. Ele iniciou assim a anotação daquele dia. Escreveu rapidamente algo do qual parecia gostar de livrar-se. Como sempre naqueles momentos de uma pressa que açodava sua alma, ele escrevia à mão. Dizia que assim fazia para exercitar a letra e se botava a falar dos inúmeros cadernos de caligrafia do tempo do grupo escolar e que ainda mantinha todos devidamente guardados.
De repente, um brilho lusco-fusco desviou-lhe o olhar para o ponto de origem. A TV vomitava as notícias sobre a pandemia em sucessivas ondas e, pondo um ponto no pequeno parágrafo, passou a dar toda a atenção ao aparelho eletrônica.
O número de pessoas vitimadas pelo vírus já chegou a 50 mil segundo todos os órgãos de imprensar, embora o senhor Presidente da República teimasse em dizer que ‘quem tiver histórico de atleta como eu não será contaminado pelo vírus’. A gargalhada dele, a gargalhada dele, exibindo os dentes sujos para as câmeras de TVs é o que mais assustava as pessoas com um mínimo de bom senso. Mais assustador do que isso só mesmo uma espécie de gente que parecia quase entrar em êxtase quando o Presidente se pronunciava. Ele não suportou aquilo e apertando o botão de off, cortou de vez o vômito do ser eletrônico. Foi dormir.
Uma maneira que ele encontrara de passar os dias de forma produtiva era dar prosseguimento ao livro de poesia que estava escrevendo fazia cinco anos. Precisa dar um ponto final naquilo, achava que com quarenta e cinco poemas o livro já se dava por acabado. Mas a quarentena tinha feito com que ele revisasse com mais cautela os poemas já escolhidos para compor o livro e isso tudo levava tempo. Fora isso, alguns poemas tinham vindo bater-lhe à porta e isso requeria mais tempo para elaborar com o mínimo de cuidado a nova safra de poemas. Ali de frente para a tela do computador clicou na pasta onde se lia POEMAS-LIVRO e aqui se abriu perante seus olhos. Foi na penúltima página que releu o poema que dormitava ali:
Hoje o dia resolveu
Se espichar matreiro
Sobre a réstia de poesia
Que me espreitava da janela oblíqua do olhar dela.
Seus dedos matinais
Colheriam rosas orvalhadas
Que pendiam sonolentas
Para além da borda penumbrosa
De um coração sonoro que auscultava o meu.
À tarde os dedos
Crispados por dardos solares
Trariam luz e calor
Ao que antes fora indefinível imprecisão de bocas vorazes.
Idos os anéis, ficados os dedos
Mas agora então noturnos animais
Esgueirando-se, diáfanos,
Pela luz ausente do quarto
Mergulhados no sono
Mas já quase então famintos cretáceos
Esgueirando-se rumo aos róseo-avermelhados tons
Da aurora.
(Texto publicado na Coletânea “Distopia 2020”)
ERNÂNI GETIRANA, poeta e escritor. Autor, dentre outros livros, de: Debaixo da Figueira do Meu Avô e Lendas da Cidade de Pedro II e História, Geografia e Literatura do Município de Pedro II (quase no prelo). Escreve aos sábados para o Portal P2.
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